Cento e dez anos depois do texto seminal de Freud, podemos dizer que a regra se mantém mas nos convida a lidar cada vez mais com a variante invertida desta estrutura. Nossas modalidades de gozo são cada vez mais sensíveis à criação de identidades, segmentações de consumo e orientações políticas. Inversamente, o oligopólio religioso da repressão deu lugar, ao menos nas sociedades ocidentais, ao projeto de auto-empreendimento individual de enunciação da norma.
Por isso, podemos olhar para sociedades altamente repressivas, como a indiana, e perceber nelas uma centelha crítica. Ela tornou-se um caso de espelho invertido, de certa maneira anacrônico, de nossa relação com a moral sexual civilizada pós-moderna. Queremos prescrever um
kama sutradigital como capítulo preliminar da felicidade compulsória que impomos para nossas crianças. Por outro lado, as tratamos com um equivalente da moral dupla e ambígua que Freud descreveu para as mulheres. Consideramos que elas são nossa posse e extensão, propriedade e investimento, mas também que deveriam ser livres e autônomas. Tudo isso sem nos desobedecer. Terceirizamos sua educação e nos desincumbimos do trabalho cultural de sua formação. Queremos protegê-las do mal, controlando todos os riscos trazidos pelo outro, ao mesmo tempo em que esquecemos dos riscos que nós mesmos representamos para eles como enunciação unilateral da norma. Percebe-se assim que o semblante, como articulação entre a lei e o prazer, é o lugar de uma contradição. Uma contradição que piora e mostra seus efeitos deletérios quando não pode ser reconhecida em sua estrutura de “como se”.
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