quarta-feira, 17 de junho de 2020

A inversão de valores para o novo pensamento conservador, por Christian Dunker

Por  Patricia Faermann




Do Blog da Boitempo
Por Christian Ingo Lenz Dunker
A educação sexual das crianças: a enunciação repressiva
 
   Já que o relativismo comportamental é a lei geral, por que não usar a mesma regra para enunciar valores tradicionais? Já que o feminismo está se colocando por toda parte por que não voltar a vestir o machismo escancarado? É esta inversão imaginária que comanda a gramática conservadora contemporânea por meio da moral dupla e da enunciação repressiva.
* Este artigo é um desdobramento da coluna anterior de Christian Dunker no Blog da Boitempo, intitulada “A educação sexual das crianças: a moral dupla“.

 Seria de se esperar que a psicanálise mantivesse uma atitude de respeitosa complacência e admiração pelas variedades antropológicas dos semblantes assumidos pela sexualidade humana, mantendo uma atitude de neutralidade benevolente, análoga à que se espera do clínico diante de seus analisantes. Diante do combate cultural, das políticas sexuais ou das problemáticas de gênero deveríamos adotar a crença de que não há evolução nem hierarquia, mas apenas indiferença. O que se ganha de um lado perde-se de outro. No que diz respeito a valores ou modalidades de educação, todos eles seriam igualmente ruins na medida em que têm por objetivo comum reproduzir a repressão das pulsões. O argumento se encontrará resumido por Freud em O mal-estar na civilização, notadamente em sua ponderação sobre o papel da tecnologia: a mesma época que inventou o telefone, capaz de aproximar as pessoas, popularizou as estradas de ferro, que levaram estas mesmas pessoas para longe de nós.
  Contudo, seria preciso lembrar aqui um texto freudiano fora desta curva – e muitas vezes esquecido pelos comentadores, com a notável exceção de Wilhelm Reich – chamado A moral sexual civilizada e a doença nervosa moderna, de 1908. Para aqueles que estão acostumados a enfatizar o machismo adrocêntrico e familiarista de Freud esquecendo-se convenientemente do argumento do relativismo cultural, seria importante lembrar como nesse texto Freud critica a moral dupla, que incide de forma seletiva para homens e mulheres no que diz respeito à sexualidade, notadamente quando se trata da monogamia e do uso dos prazeres. A tese central é de que o excesso de repressão (ou sacrifício da satisfação sexual) concorre para a produção social dos sintomas neuróticos. Contudo, o ponto crucial é menos o conteúdo da norma do que a rigidez e a demanda de sacrifício que ela carrega em si ou que ela quer impor aos outros.
  Se a psicanálise tem alguma contribuição a oferecer ao regime das práticas sexológicas ou erotológicas ela recairá menos na prescrição de certos valores e mais na crítica da sua enunciação repressiva. Em outras palavras: indiferença quanto à diversidade das modalidades de gozo e resistência contra as instâncias que tentam monopolizá-las, quer subjetivamente (como o supereu), quer culturalmente (como as religiões, o Estado e a família). Em última instância, os semblantes são apenas montagens contingentes entre uma coisa e outra.
  Cento e dez anos depois do texto seminal de Freud, podemos dizer que a regra se mantém mas nos convida a lidar cada vez mais com a variante invertida desta estrutura. Nossas modalidades de gozo são cada vez mais sensíveis à criação de identidades, segmentações de consumo e orientações políticas. Inversamente, o oligopólio religioso da repressão deu lugar, ao menos nas sociedades ocidentais, ao projeto de auto-empreendimento individual de enunciação da norma. Por isso, podemos olhar para sociedades altamente repressivas, como a indiana, e perceber nelas uma centelha crítica. Ela tornou-se um caso de espelho invertido, de certa maneira anacrônico, de nossa relação com a moral sexual civilizada pós-moderna. Queremos prescrever um kama sutradigital como capítulo preliminar da felicidade compulsória que impomos para nossas crianças. Por outro lado, as tratamos com um equivalente da moral dupla e ambígua que Freud descreveu para as mulheres. Consideramos que elas são nossa posse e extensão, propriedade e investimento, mas também que deveriam ser livres e autônomas. Tudo isso sem nos desobedecer. Terceirizamos sua educação e nos desincumbimos do trabalho cultural de sua formação. Queremos protegê-las do mal, controlando todos os riscos trazidos pelo outro, ao mesmo tempo em que esquecemos dos riscos que nós mesmos representamos para eles como enunciação unilateral da norma. Percebe-se assim que o semblante, como articulação entre a lei e o prazer, é o lugar de uma contradição. Uma contradição que piora e mostra seus efeitos deletérios quando não pode ser reconhecida em sua estrutura de “como se”.
  O tema tão importante nos anos 1980 da educação sexual, ainda que combinado com a problemática da reprodução, da prevenção da gravidez precoce e das doenças infecto contagiosas, desapareceu quase completamente nos anos 2010. No lugar disso emerge a obscena Índia que havia ficado adormecida no Brasil profundo da Retomada: cultura do estupro, assédio generalizado, persistência do turismo sexual e da prostituição infantil, retóricas religiosas administrando o sexo antes, durante e depois do casamento, sem falar na cobertura jurídica para tratamentos de “reorientação sexual” ou no controle de museus e universidades.
  Tudo se passa como se o discurso conservador do Brasil do Retrocesso estivesse propondo o exato oposto da atitude psicanalítica: semblante composto pela enunciação repressiva, seletiva e “flexível” da norma junto com intolerância radical quanto aos modos de gozo que não lhes são idênticos. “Flexível” aqui não é mais o contrário de rígido, como se usava empregar para qualificar o supereu freudiano. Por isso, “flexível” pode assumir o valor de não ter posição alguma, isentar-se ou decidir que sua posição é a de não ter posição. “Flexível” quer dizer: de acordo com a conveniência de quem aplica localmente a regra. Ou seja: flexível na aparência, opressivo na essência. Enunciados liberais, enunciação repressiva. Exatamente como se diz que as novas leis trabalhistas flexibilizam as relações entre patrões e empregados, facultando que milhares de professores universitários sejam demitidos em nome desta “flexibilização”.
  Já que todas as identidades são possíveis, por que não a do meu curral eleitoral? Já que o relativismo comportamental é a lei geral, por que não usar a mesma regra para enunciar valores tradicionais? Já que o feminismo está se colocando por toda parte por que não voltar a vestir o machismo escancarado? É esta inversão imaginária que comanda a gramática conservadora por meio da moral dupla e da enunciação repressiva.


  A Boitempo acaba de disponibilizar mais um curso completo em seu canal no YouTube! Em “A psicanálise do Brasil entre muros”, o psicanalista Christian Dunker conduz uma leitura comentada de seu aclamado livro Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. Ao todo, são sete aulas de cerca de 15 minutos cada dedicadas a atravessarem, capítulo a capítulo, a leitura dessa densa e explosiva obra que levou o Prêmio Jabuti na categoria de psicologia e psicanálise. A série pode servir tanto de complemento quando introdução à leitura desta contribuição desafiadora para pensar criticamente o Brasil hoje.

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia e Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise.

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